quinta-feira, janeiro 24, 2008

Mais uma fábula


Fábula do Gato
e o Vampiro da Lapa


O gato preto de olhos dourados, que se pusera o nome de Aprígio - em honra de um seu avô que fora adotado por um eminente reitor da Universidade de São Paulo, nomeado por militares -, foi em busca da gata de branca e sedosa penugem, sua querida Clarinha, companheira de aventuras noturnas.
Ela fugira do beco onde os dois se abrigavam, pois eram bem tratados por um casal de mendigos que ali fizera seu ninho com caixas de papelão e tapetes persas caídos de uma janela do andar mais alto do prédio à esquerda, junto com um sofá de veludo vermelho. A gata assustara-se com a queda do móvel na noite anterior e não voltara.
O felino subiu no muro do jardim de um sobrado na esquina e começou a ronda noturna, olhos fulgentes perscrutando as sombras.
Caminhou, caminhou, por muros e telhados até chegar ao supermercado, onde as latas de lixo atraiam ratos. bichanos e cães vadios da redondeza. Havia comida farta: aparas de carne que o açougueiro rejeitara, restos de peixes, queijos, bolachas, laticínios e pães vencidos – banquete para os animais sem dono.
O pátio estava vazio a não ser pela figura demoníaca do Vampiro da Lapa, um negro de quase 2 m de altura, esbelto e bonito, olhos rubros e cintilantes, dentes brancos e aguçados. Surgia por ali em noites de lua cheia, e se refestelava com o sangue dos bichos vadios que, preocupados apenas em satisfazer a fome, não se davam conta da presença do chupador de sangue.
Aprígio não tinha medo do Vampiro.
Certa vez, avisara-o para não sugar o sangue de um rato afetado pelo mal de Alzhaimer, resultado de experiências de cientistas de um laboratório na Pompéia, do qual escapara por descuido de uma servente entretida por devaneios com a fantasia que iria usar como destaque da escola de Samba Camisa Verde. O Vampiro agradecera a informação, pois o sangue contaminado poderia prejudicar sua eterna juventude mental, obrigando-o a compensar os danos com a ingestão do plasma de 30 virgens, mulheres ou homens, de 15 anos, conforme receitava o Livro Secreto dos Vampiros, no Capítulo sobre a Imortalidade. Considerando que nos dias de hoje essa raridade de vítimas adequadas o obrigaria a despender muito tempo e a percorrer enormes distâncias para atingir seu objetivo, o gato Aprígio e sua protegida Clarinha foram agraciados com a vampiresca imunidade, estando isentos da contribuição sanguinolenta, tributo decretado por Drácula, rei dos vampiros, há séculos, para alimentar a raça e assegurar –lhe a sobrevivência.
- Quando o imposto é de lei, cumpre ao beneficiário cobrá-lo! – asseverara o sanguessuga, quando o gato o importunara com o questionamento daquela violência cometida contra humanos e animais.
Naquela primeira conversa amistosa, Aprígio soube que o Vampiro da Lapa ocupava uma posição de destaque na hierarquia da Fraternidade do Sangue, pois fora mordido pelo próprio conde Drácula, no início dos anos 60 do século 20, quando lhe facilitara a participação no jogo de ronda, nos porões da faculdade de Direito do Largo São Francisco, ao qual só eram admitidos alguns professores, alunos e políticos vinculados à Bucha, secreta sociedade, rival da maçonaria na influência dos destinos políticos da Nação. Protegido de seus inimigos por alguns maçons influentes na Europa, o Vampiro Mor viera ao Brasil com a missão de extinguir a confraria dos advogados. Tendo ingressado no restrito círculo, logo dominara a mente do Chanceler da organização e, durante o governo presidencial de Jânio Quadros, espalhara a cizânia entre os membros, alguns transformados em vampiros como ele, conseguindo destruir a organização. Pedrão, o hoje chamado Vampiro da Lapa, escolhera este bairro onde nascera, para exercer o seu ministério.
- E porque ataca ratos, gatos e cães vadios? O sangue humano não lhe basta? – indagara-lhe o gato, com seus olhos dourados, brilhando de indignação.
- Ora, amigo Aprígio... – o Vampiro assumira um ar de condescendente aprumo. - A partir dos anos 70 o sangue humano traz a contaminação química de cocaína, LSD, “extasy”, maconha e hormônios industrializados, os quais afetam o nosso equilíbrio mental. Tem sido difícil encontrar jovens sem esses vícios. Precisamos muito da energia contida nas veias imaculadas da nova geração. É o elixir da nossa eterna juventude.
- Isso não explica a recente tara de sua raça pela nossa. Sua mordida nos homens e mulheres, nem sempre mata; muitas vezes apenas produz novos vampiros, conforme li num romance que achei numa lata de lixo. Quando um animal é infectado por um de vocês, invariavelmente, morre. Isto não é justo! – Aprígio arreganhara os dentes e rosnara, quase como um cão, tal era sua revolta.
O Vampiro simplesmente sorrira e explicara:
- Na terça feira do Carnaval de 1968, depois de ter participado do desfile da Rosas de Ouro, fantasiado de Nosferatu, fui ao baile do Corinthians. Cheirei lança-perfume fornecido por um colega argentino, tomei várias doses de uísque paraguaio e até dei umas tragadinhas num baseado da “pura de Pernambuco”. Sabe como é, no Carnaval vampiro brasileiro esquece as regras da Ordem e aproveita para afastar o tédio da imortalidade. Nesses dias, o Conde não sai da tumba para depois poder dizer que não viu a orgia e o desvario de seus vassalos. Assim, tem uma boa desculpa para manter a autoridade e não punir ninguém. Ele aprendeu isso em suas viagens ao Brasil. – O Vampiro percebera que os olhos do gato continuavam com um brilho estranho, talvez de ansiedade pelas explicações precedidas de circunlóquio, um péssimo hábito que adquirira nas férias que passara em Brasília. Resolvera, então, ir direto ao assunto: - Depois do baile, encontrei uma linda jovem caída numa praça perto do clube. Suguei-lhe o néctar e injetei-lhe um pouco do meu, pois era tão linda que merecia integrar-se à nossa Escola do Fim dos Tempos. Passei mal durante uns quinze dias, fraco, febril, sem ânimo para me levantar do caixão, sentindo o bafo fétido da morte no rosto, até que o Godofredo, um colega muito experiente, condoído com o meu estado, explicou-me sobre o veneno contido na alquimia suja fervilhando nas veias e artérias dos drogaditos. Contou-me que o antídoto estava no sangue dos pequenos animais: ratos, cães e gatos. Atuava também como vacina, com duração de uma semana. Daí em diante, tenho cobrado essa nova contribuição social. Este não é o país dos impostos? Todo ano inventam um novo ou acrescem os antigos.
Aprígio aceitara a explicação, acomodando-se à realidade. Afinal, ele e sua querida Clarinha estavam isentos. E muitos de seus amigos, como bons sonegadores, evitavam as proximidades do supermercado onde o Fiscal Amaldiçoado vinha regularmente fazer sua cobrança. Uma nuvem com forma de gata cobriu a lua, fazendo Aprígio lembrar-se do que o trouxera até ali. A ansiedade fez tremular o miado com o qual o indagou:
- Você viu a Clarinha?
- Por aqui ela não passou. Deve ter ido ao Mercado da Lapa, onde o Sardinha está distribuindo peixes frescos.
Os pelos de Aprígio se eriçaram e as unhas arranharam o teto do carro onde se aninhara para conversar com o Vampiro Pedrão.
Sardinha era um gato rajado, um puro vira-lata, seu rival na disputa pelo cargo de Rei dos gatos da Lapa, cuja eleição dar-se-ia no mês seguinte. Pior, ele vinha miando em tome cativante para a Clarinha, disputando também os carinhos da gatinha. Era um adversário desleal. Como Presidente do Sindicato dos Gatos do Mercado Municipal da Lapa, ameaçara uma greve, sem prazo definido, na matança de ratos que infestavam suas instalações, se os comerciantes não colocassem à sua disposição, mais 20 quilos de sardinha fresca para distribuição, não só aos 10 gatos filiados à agremiação, mas também, a todos os gatos do bairro que lhe viessem pedir ajuda. Fecharam um acordo em 15 quilos. O Sardinha agora estava comprando os votos da “gataiada” vadia, sem que Aprígio pudesse fazer algo para evitar essa atração pelo estômago. Resolveu apelar às boas graças do amigo Vampiro:
- Meu camarada Pedrão. Eu lhe fiz um favor. Você poderia me dar uma compensação além da vida...
- Qual?
- Em vez de vir cobrar sua contribuição aqui no supermercado onde se concentravam meus eleitores, poderia ir cobrá-la lá no Mercado Municipal – sugeriu o gato, com um miado-queixume quase enterneceu o Fiscal Amaldiçoado.
- Infelizmente para você, caro amigo, não posso prestar-lhe esta serventia. Seria a quebra da minha palavra empenhada. – O Vampiro dera à sua a negativa o tom solene com o qual o falecido Jânio Quadros costumava recusar os pedidos de seus correligionários mais fiéis.
- Quebra de palavra?
- Na semana passada o meu preceptor, Godofredo, informou-me que o sangue de 10 ratinhas virgens tem efeito prolongado no combate a ingestão de sangue contaminado por drogas. Dura um mês. O Sardinha me ofereceu esse repasto mensal em troca da minha garantia de eu não aparecer nos seus domínios. Na próxima semana começo a receber o meu tributo especial, que até já denominei: ISV, ou seja, Imposto Sobre Virgindade. Fechei o acordo, até pensando em você, pois durante um mês, estando devidamente vacinado, eu não precisarei vir aqui semanalmente efetuar minha cobrança.
Aprígio abaixou a cabeça e o rabo; deslizou sobre a capota do carro, deixando um fino arranhão em sinal de raiva contida – a lógica do Vampiro e o oportunismo do adversário esperto não lhe forneciam uma alternativa satisfatória - e, aborrecido caminhou lentamente em direção ao muro além do qual encontraria o caminho para o Mercado da Lapa, onde esperava encontrar sua gata.Os miados do Gatobbels, seu assessor de marketing político, ressoaram em sua cabeça:
- O mundo é dos espertos! Faça um acerto com o gerente do supermercado. Prometa acabar com todos os ratos que vivem perambulando pelas prateleiras, afugentando os fregueses. Peça em troca peixe fresco, Distribua a todo gato faminto com direito a voto.
- Não posso fazer isso. Eu sou amigo de muitos desses ratos.
- Chefinho, os fins justificam os meios. Você não quer ganhar a eleição?
Aprígio dera-lhe as costas e pulara em cima do muro. Ele era um gato de rígidos princípios morais, não gostava de safadezas. Mas acabava se acomodando às alheias. Embora forte, com unhas e dentes afiados, não se metia em brigas.
Gatobbels bandeou-se para o adversário em troca de um emprego no SINDIGAT (O Sindicato dos Gatos) e passou a ser seu principal conselheiro de campanha.
O gato Aprígio perdeu a eleição, mas conservou a namorada. Como conseguiu isto? Ah! Esta é uma outra estória.


Por
Antonio Carlos Rocha
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