
4
O tempo é convenção humana criada para ir marcando seus atos e feitos desde o nascimento até a morte. A ansiedade, o compromisso com data certa, a frustração pelos acontecimentos que não se produziram conforme o planejado não afetam os bichos e tampouco deuses ou vampiros imortais.
Passam-se semanas sem que Sardinha entregue ao Vampiro as dez ratinhas virgens prometidas. A rataria alertada por Aprígio e seus amigos as esconde no labirinto escuro dos esgotos que deságuam no rio Tietê.
Certa noite – como sabemos os vampiros não caminham à luz do sol sob pena de explodirem ao seu contato -, Sardinha consegue capturar uma desavisada que passa cantarolando ao alcance de suas garras. Vai depressa entregá-la ao monstro., cuja memória se aviva e o leva a indagar:
- Não eram dez? – A baba sanguinolenta de um repasto recente lhe mancha os lábios.
- Beem... – o gato hesita um pouco e prossegue, - não prometi todas de uma vez.
O Vampiro se irrita com aquela tentativa de enganá-lo. Olhos flamejantes, depois de sugar o sangue da ratinha e atirar o corpo numa lata de lixo, ele retruca:
- Amanhã à noite venho buscar as outras nove. Se não trouxer, será você quem pagará a dívida de sangue.
- Fique tranqüilo, calma... Eu sempre cumpro minha palavra. Palavra de rei é sagrada!- Sardinha assegura.
Vai-se embora rastejando, coração batendo descompassado, arrependido de ter feito pacto com o diabo. Reúne seu bando, ameaça, implora, promete recompensas e, por via das dúvidas, se esconder num pequeno buraco na parede do prédio do Mercado. Lá dentro, o monstro não poderá alcançá-lo, pensa ele.
Enquanto isso, Aprígio e sua querida Clarinha passeiam por muros e quintais avisando os ratos para se protegerem dos capangas do Rei que se vendera ao Vampiro.
Passam-se as noites, não importa quantas. O Vampiro perde a paciência com a falta de pagamento do tributo, chuta com força de monstro a parede onde se escondera o gato-rei. Abre-se um enorme buraco, tijolos se espalham e o rato, sufocado pela poeira, acaba nas mãos geladas da fera. Feroz e vingativa, desconsidera suas súplicas, bebe-lhe o sangue até a última gota.
O lívido cadáver, de olhos arregalados, fica estendido sobre o caixote que lhe servira de palanque eleitoral: para servir de exemplo aos maus pagadores.
Pensam que Aprígio festejou a tragédia?
Esse desfecho não estava nos seus planos. Acreditava que a astúcia e o medo de Sardinha o fariam fugir para bem longe, talvez lá pelas bandas da favela em Osasco, de onde viera na carroceria de um caminhão.
Não gostava do adversário, mas detestava ainda mais o vampiro, aquela aberração da natureza.
Bastet, a deusa-gata, agora incorporada no corpo de uma felina idosa, à beira da morte, mas salva pela força mágica da nova alma, explicara a Aprígio a origem daquela raça de danados.
O faraó Djer, da primeira dinastia reinava em Memphis, por volta do ano 3.000 AC. Obcecado com a imortalidade, encomendara ao Mago Djin, um alquimista palaciano realizador de grandes proezas, íntimo dos deuses, uma poção mágica que garantisse ao soberano a vida eterna. Depois de um ano de experiências fracassadas, Djin misturou plantas e ervas que um navegante fenício trouxera de um continente além do oceano Atlântico ao sangue de mulheres virgens imoladas em sacrifício ao deus Osíris, morto e renascido no início dos tempos. O faraó, que era velho e muito doente, tomou a beberagem e logo percebeu que a mocidade e as forças lhe voltavam. Contudo, sua pele não suportava a luz do sol e a sede de sangue se instalara em seu organismo. As atrocidades que passou a cometer contra os súditos, a fama de sugador de sangue de virgens e cortesãs ocasionaram uma revolta dos nobres. Seu filho mais velho, vendo que o pai continuava jovem enquanto ele definhava, comprou de Djin, que também se tornara vampiro, mas discreto, morando isolado num templo, o segredo para interromper aquela vida misteriosamente longa. Mandou derrubar o teto do quarto aonde o pai dormia, às 11 horas de uma manhã ensolarada. O imortal explodiu ao se banhado pela luz solar.
- O filho do faraó também virou vampiro? – indagou Aprígio a Bastet.
- Não, ele era um homem bom, que acreditava na imortalidade após a morte. Preferia conhecer novos mundos, vivenciar novas experiências e aventuras. Morreu aos 80 anos idolatrado por seu povo.
- E como surgiram tantos vampiros no correr dos tempos?
- Djin... Foi ele o pai da raça, o criador de uma dinastia. Perambulou pelo mundo até passar seu sangue ao Conde Drácula. Este, mais malvado e ambicioso que ele, matou-o sem piedade, enfiando-lhe uma estaca de madeira no coração. Foi Drácula quem descobriu mais esta forma de se matar vampiros.
Aprígio prepara-se então, para livrar-se do chupador de sangue que assola o bairro. Achega-se a ele, altas horas da madrugada e o convida a caçar ratinhas virgens que estariam escondidas na tubulação de esgotos, perto da igreja da Lapa. Leva-o a percorrer durante horas, os túneis labirínticos.
Nada de ratos ou ratinhos! Aprígio os avisara com antecedência.
Às 9 horas da manhã, a fera impaciente ameaçando matá-lo, o gato astuto sobe uma escada que vai dar num bueiro ao lado da Igreja. O vampiro bufando, segue ao seu encalço.
- Aqui! Aqui tem duas escondidas num buraco na parede – grita Aprígio.
Bastet, que aguardava esse sinal, levanta a tampa do bueiro com sua força de deusa e deixa entrar os raios do sol que ela, com a energia do seu pensamento, concentra sobre a face espantada do Vampiro.
- Buuuum!
A explosão, embora esperada, assusta Aprígio que quase desaba nas profundezas do esgoto. Bastet não permite a queda. Puxa-o rapidamente para a rua, onde os dois quase são atropelados por um carro que passa por ali.
Dias depois, ao final da festa que gatos, ratos e cães dão em honra de Aprígio, a deusa se transfere para o corpo de um bem-te-vi que canta alegre num telhado. E voa para longe, em busca de seu destino.
Foi esta a estória que me contou o Pança, ambos tomando refrigerante, sentados num banco de praça, naquele fim de tarde de verão.
Um gato preto e uma linda gata branca se enroscavam nas pernas do velho mendigo, enquanto duas gatinhas de lindos olhos azúis, muito parecidas com a mãe, brincavam com uma bolinha de papel.
FIM
O tempo é convenção humana criada para ir marcando seus atos e feitos desde o nascimento até a morte. A ansiedade, o compromisso com data certa, a frustração pelos acontecimentos que não se produziram conforme o planejado não afetam os bichos e tampouco deuses ou vampiros imortais.
Passam-se semanas sem que Sardinha entregue ao Vampiro as dez ratinhas virgens prometidas. A rataria alertada por Aprígio e seus amigos as esconde no labirinto escuro dos esgotos que deságuam no rio Tietê.
Certa noite – como sabemos os vampiros não caminham à luz do sol sob pena de explodirem ao seu contato -, Sardinha consegue capturar uma desavisada que passa cantarolando ao alcance de suas garras. Vai depressa entregá-la ao monstro., cuja memória se aviva e o leva a indagar:
- Não eram dez? – A baba sanguinolenta de um repasto recente lhe mancha os lábios.
- Beem... – o gato hesita um pouco e prossegue, - não prometi todas de uma vez.
O Vampiro se irrita com aquela tentativa de enganá-lo. Olhos flamejantes, depois de sugar o sangue da ratinha e atirar o corpo numa lata de lixo, ele retruca:
- Amanhã à noite venho buscar as outras nove. Se não trouxer, será você quem pagará a dívida de sangue.
- Fique tranqüilo, calma... Eu sempre cumpro minha palavra. Palavra de rei é sagrada!- Sardinha assegura.
Vai-se embora rastejando, coração batendo descompassado, arrependido de ter feito pacto com o diabo. Reúne seu bando, ameaça, implora, promete recompensas e, por via das dúvidas, se esconder num pequeno buraco na parede do prédio do Mercado. Lá dentro, o monstro não poderá alcançá-lo, pensa ele.
Enquanto isso, Aprígio e sua querida Clarinha passeiam por muros e quintais avisando os ratos para se protegerem dos capangas do Rei que se vendera ao Vampiro.
Passam-se as noites, não importa quantas. O Vampiro perde a paciência com a falta de pagamento do tributo, chuta com força de monstro a parede onde se escondera o gato-rei. Abre-se um enorme buraco, tijolos se espalham e o rato, sufocado pela poeira, acaba nas mãos geladas da fera. Feroz e vingativa, desconsidera suas súplicas, bebe-lhe o sangue até a última gota.
O lívido cadáver, de olhos arregalados, fica estendido sobre o caixote que lhe servira de palanque eleitoral: para servir de exemplo aos maus pagadores.
Pensam que Aprígio festejou a tragédia?
Esse desfecho não estava nos seus planos. Acreditava que a astúcia e o medo de Sardinha o fariam fugir para bem longe, talvez lá pelas bandas da favela em Osasco, de onde viera na carroceria de um caminhão.
Não gostava do adversário, mas detestava ainda mais o vampiro, aquela aberração da natureza.
Bastet, a deusa-gata, agora incorporada no corpo de uma felina idosa, à beira da morte, mas salva pela força mágica da nova alma, explicara a Aprígio a origem daquela raça de danados.
O faraó Djer, da primeira dinastia reinava em Memphis, por volta do ano 3.000 AC. Obcecado com a imortalidade, encomendara ao Mago Djin, um alquimista palaciano realizador de grandes proezas, íntimo dos deuses, uma poção mágica que garantisse ao soberano a vida eterna. Depois de um ano de experiências fracassadas, Djin misturou plantas e ervas que um navegante fenício trouxera de um continente além do oceano Atlântico ao sangue de mulheres virgens imoladas em sacrifício ao deus Osíris, morto e renascido no início dos tempos. O faraó, que era velho e muito doente, tomou a beberagem e logo percebeu que a mocidade e as forças lhe voltavam. Contudo, sua pele não suportava a luz do sol e a sede de sangue se instalara em seu organismo. As atrocidades que passou a cometer contra os súditos, a fama de sugador de sangue de virgens e cortesãs ocasionaram uma revolta dos nobres. Seu filho mais velho, vendo que o pai continuava jovem enquanto ele definhava, comprou de Djin, que também se tornara vampiro, mas discreto, morando isolado num templo, o segredo para interromper aquela vida misteriosamente longa. Mandou derrubar o teto do quarto aonde o pai dormia, às 11 horas de uma manhã ensolarada. O imortal explodiu ao se banhado pela luz solar.
- O filho do faraó também virou vampiro? – indagou Aprígio a Bastet.
- Não, ele era um homem bom, que acreditava na imortalidade após a morte. Preferia conhecer novos mundos, vivenciar novas experiências e aventuras. Morreu aos 80 anos idolatrado por seu povo.
- E como surgiram tantos vampiros no correr dos tempos?
- Djin... Foi ele o pai da raça, o criador de uma dinastia. Perambulou pelo mundo até passar seu sangue ao Conde Drácula. Este, mais malvado e ambicioso que ele, matou-o sem piedade, enfiando-lhe uma estaca de madeira no coração. Foi Drácula quem descobriu mais esta forma de se matar vampiros.
Aprígio prepara-se então, para livrar-se do chupador de sangue que assola o bairro. Achega-se a ele, altas horas da madrugada e o convida a caçar ratinhas virgens que estariam escondidas na tubulação de esgotos, perto da igreja da Lapa. Leva-o a percorrer durante horas, os túneis labirínticos.
Nada de ratos ou ratinhos! Aprígio os avisara com antecedência.
Às 9 horas da manhã, a fera impaciente ameaçando matá-lo, o gato astuto sobe uma escada que vai dar num bueiro ao lado da Igreja. O vampiro bufando, segue ao seu encalço.
- Aqui! Aqui tem duas escondidas num buraco na parede – grita Aprígio.
Bastet, que aguardava esse sinal, levanta a tampa do bueiro com sua força de deusa e deixa entrar os raios do sol que ela, com a energia do seu pensamento, concentra sobre a face espantada do Vampiro.
- Buuuum!
A explosão, embora esperada, assusta Aprígio que quase desaba nas profundezas do esgoto. Bastet não permite a queda. Puxa-o rapidamente para a rua, onde os dois quase são atropelados por um carro que passa por ali.
Dias depois, ao final da festa que gatos, ratos e cães dão em honra de Aprígio, a deusa se transfere para o corpo de um bem-te-vi que canta alegre num telhado. E voa para longe, em busca de seu destino.
Foi esta a estória que me contou o Pança, ambos tomando refrigerante, sentados num banco de praça, naquele fim de tarde de verão.
Um gato preto e uma linda gata branca se enroscavam nas pernas do velho mendigo, enquanto duas gatinhas de lindos olhos azúis, muito parecidas com a mãe, brincavam com uma bolinha de papel.
FIM
Direitos reservados: Antonio Carlos Rocha
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