
2
Clarinha é uma gata branca, macia, olhos azuis lindos, porém medrosos. Tem só 2 anos, grande parte passados nos sofás e alfombras da rica madame do 9o. andar do prédio ao lado do beco onde vivemos 3 gatos e 2 cães vadios, todos sem raça definida, jogados na rua logo após o nascimento, por donos infiéis e sem posses para sustentar a cria de mães que não foram castradas e perambulavam descuidadas fora de casa no período do cio. A gata, no entanto, tem raça, sei lá qual, pois nunca me preocupei com “pedigree” de bicho ou gente, mas a dona veio procurá-la, chorosa, logo depois do marido tê-la atirado pela janela durante briga do casal. A bichana resistiu à queda, pois caíra sobre a barriga protuberante e enorme, do adormecido Chico Pança, mendigo profissional que fizera do beco a sua residência e nos acolhera sob sua guarida liberal e sem regras, permitindo-nos a proteção da pequena tenda que armava nos dias de chuva. Sua bonomia, a ausência de vícios, e o saber contar histórias às crianças que freqüentavam o jardim aqui perto, granjeara-lhe a simpatia de famílias das redondezas, as quais sempre lhe forneciam sobras de refeições e de roupas além de jornais que ele lia com interesse e depois usava para guarnecer seu leito de folhas de papelão. O Pança se dizia profissional, pois não aceitava viver à custa das bolsas assistenciais distribuídas por governantes que ele tachava de “populistas”, certamente uma palavra depreciativa conforme transparecia no olhar e no tom de voz. Ele não era um preguiçoso, trabalhava como “contador de histórias” e recebia sua remuneração “em espécie” - parecia se referir à alimentação e vestuário -, embora lhe dessem, de vez em quando, uns trocados, com os quais ele comprava remédios para si e para os animais seus amigos. Dizia que estudara veterinária, sustentado pelos pais, falecidos num desastre de automóvel provocado por um jovem embriagado, que por sua vez, fora morto algumas semanas depois com um tiro na nuca, dado por um desconhecido. Policiais incompetentes e subornados pelos pais da vítima haviam reunido falsas testemunhas que acusaram o Chico de ser o assassino. Cumprira dez anos de cadeia e saíra pobre, sem emprego, desiludido com a sociedade humana, injusta, corrupta e cruel. Bem, essa era a estória que ele contava, mas outros mendigos inventavam tragédias semelhantes ou piores para justificar sua presença nas ruas e os vícios da maioria. Verdade ou não, Chico era um bom protetor e amigo. Afugentava os moleques safados que nos atiravam pedras, curava animais doentes, ouvia e entendia a nossa linguagem de latidos ou miados, não nos procurava quando passávamos alguns dias passeando pelo bairro em busca de aventuras e nem nos repreendia quando voltávamos. Sua companheira, Veroca, tinha um jeito muito parecido com o dele, embora magricela e pequenina. Vivia pelo bairro a catar papel para vender, numa carroça que colocava na entrada do beco, todas as noites, segundo ela, para evitar a entrada de ladrões. Nunca brigava com o Chico, nem incomodava ou ralhava com nenhum de nós.
Embora arranhado pela Clarinha, quando a pegara no colo para verificar seu estado depois da queda, fora ele que a escondera num canto de sua tenda, apavorada ao ouvir a voz da dona que a procurava, dizendo de sua estimação e dos 2 mil reais que pagara por aquela gata de raça. Contara do ódio do marido ciumento e agressivo, e de sua decisão de vender a gatinha a quem lhe pagasse pelo menos 500 reais, custo que ela contabilizara, de tratamentos, alimentos e hospedagem durante o tempo em que cuidara dela.
O velho Pança não gostando nada da mulher, afirmou-lhe com rispidez:
- Não vi essa gata e se visse não lhe diria. O seu lar não é conveniente para a segurança e saúde desse bichinho delicado.
Em seguida, deu-lhe a costa. A madame foi procurar a gata em outra freguesia.
Clarinha tornou-se uma de nós. Adotei-a como companheira e protegida, andamos juntos pelos muros miando em coro para a lua, e, se fossemos humanos, diria, que é minha namorada, pelo bem que a quero.
Foi esse o relato que me fez o gato Aprígio sobre a estória de sua afeição e relação com a “namorada”, quando veio a mim, Bastet deusa-gata do antigo Egito, pedir-me auxílio para livrar Clarinha da influência nefasta do seu adversário político, o gato Sardinha. Gato presunçoso e arrogante dominava a região do Mercado da Lapa e pretendia expandir seu domínio pelo bairro todo e adjacências. Eu sou uma deusa surgida em Mubastis, cidade egípcia, 1.000 anos antes de Cristo. Tenho ao meu dsispor os poderes benéficos e mágicos do Sol, meu pai .Comunico-me com os humanos e gatos que me adoram por intermédio de minhas estátuas e estatuetas que ainda existem pelo mundo, hoje em quantidade pequena em relação à que existia antigamente. Revelei-me a ele faz um mês, mas esta é a primeira vez que ele me pede ajuda.
Não vou decepcionar este novo adepto, depois de tantos séculos vagando pelos mundos dos mortos. Ele me convocara com seus miados angustiosos. Estendo a pata direita, acaricio a cabeça do gato Aprígio, abaixada em sinal de respeito, e digo-lhe:
Clarinha é uma gata branca, macia, olhos azuis lindos, porém medrosos. Tem só 2 anos, grande parte passados nos sofás e alfombras da rica madame do 9o. andar do prédio ao lado do beco onde vivemos 3 gatos e 2 cães vadios, todos sem raça definida, jogados na rua logo após o nascimento, por donos infiéis e sem posses para sustentar a cria de mães que não foram castradas e perambulavam descuidadas fora de casa no período do cio. A gata, no entanto, tem raça, sei lá qual, pois nunca me preocupei com “pedigree” de bicho ou gente, mas a dona veio procurá-la, chorosa, logo depois do marido tê-la atirado pela janela durante briga do casal. A bichana resistiu à queda, pois caíra sobre a barriga protuberante e enorme, do adormecido Chico Pança, mendigo profissional que fizera do beco a sua residência e nos acolhera sob sua guarida liberal e sem regras, permitindo-nos a proteção da pequena tenda que armava nos dias de chuva. Sua bonomia, a ausência de vícios, e o saber contar histórias às crianças que freqüentavam o jardim aqui perto, granjeara-lhe a simpatia de famílias das redondezas, as quais sempre lhe forneciam sobras de refeições e de roupas além de jornais que ele lia com interesse e depois usava para guarnecer seu leito de folhas de papelão. O Pança se dizia profissional, pois não aceitava viver à custa das bolsas assistenciais distribuídas por governantes que ele tachava de “populistas”, certamente uma palavra depreciativa conforme transparecia no olhar e no tom de voz. Ele não era um preguiçoso, trabalhava como “contador de histórias” e recebia sua remuneração “em espécie” - parecia se referir à alimentação e vestuário -, embora lhe dessem, de vez em quando, uns trocados, com os quais ele comprava remédios para si e para os animais seus amigos. Dizia que estudara veterinária, sustentado pelos pais, falecidos num desastre de automóvel provocado por um jovem embriagado, que por sua vez, fora morto algumas semanas depois com um tiro na nuca, dado por um desconhecido. Policiais incompetentes e subornados pelos pais da vítima haviam reunido falsas testemunhas que acusaram o Chico de ser o assassino. Cumprira dez anos de cadeia e saíra pobre, sem emprego, desiludido com a sociedade humana, injusta, corrupta e cruel. Bem, essa era a estória que ele contava, mas outros mendigos inventavam tragédias semelhantes ou piores para justificar sua presença nas ruas e os vícios da maioria. Verdade ou não, Chico era um bom protetor e amigo. Afugentava os moleques safados que nos atiravam pedras, curava animais doentes, ouvia e entendia a nossa linguagem de latidos ou miados, não nos procurava quando passávamos alguns dias passeando pelo bairro em busca de aventuras e nem nos repreendia quando voltávamos. Sua companheira, Veroca, tinha um jeito muito parecido com o dele, embora magricela e pequenina. Vivia pelo bairro a catar papel para vender, numa carroça que colocava na entrada do beco, todas as noites, segundo ela, para evitar a entrada de ladrões. Nunca brigava com o Chico, nem incomodava ou ralhava com nenhum de nós.
Embora arranhado pela Clarinha, quando a pegara no colo para verificar seu estado depois da queda, fora ele que a escondera num canto de sua tenda, apavorada ao ouvir a voz da dona que a procurava, dizendo de sua estimação e dos 2 mil reais que pagara por aquela gata de raça. Contara do ódio do marido ciumento e agressivo, e de sua decisão de vender a gatinha a quem lhe pagasse pelo menos 500 reais, custo que ela contabilizara, de tratamentos, alimentos e hospedagem durante o tempo em que cuidara dela.
O velho Pança não gostando nada da mulher, afirmou-lhe com rispidez:
- Não vi essa gata e se visse não lhe diria. O seu lar não é conveniente para a segurança e saúde desse bichinho delicado.
Em seguida, deu-lhe a costa. A madame foi procurar a gata em outra freguesia.
Clarinha tornou-se uma de nós. Adotei-a como companheira e protegida, andamos juntos pelos muros miando em coro para a lua, e, se fossemos humanos, diria, que é minha namorada, pelo bem que a quero.
Foi esse o relato que me fez o gato Aprígio sobre a estória de sua afeição e relação com a “namorada”, quando veio a mim, Bastet deusa-gata do antigo Egito, pedir-me auxílio para livrar Clarinha da influência nefasta do seu adversário político, o gato Sardinha. Gato presunçoso e arrogante dominava a região do Mercado da Lapa e pretendia expandir seu domínio pelo bairro todo e adjacências. Eu sou uma deusa surgida em Mubastis, cidade egípcia, 1.000 anos antes de Cristo. Tenho ao meu dsispor os poderes benéficos e mágicos do Sol, meu pai .Comunico-me com os humanos e gatos que me adoram por intermédio de minhas estátuas e estatuetas que ainda existem pelo mundo, hoje em quantidade pequena em relação à que existia antigamente. Revelei-me a ele faz um mês, mas esta é a primeira vez que ele me pede ajuda.
Não vou decepcionar este novo adepto, depois de tantos séculos vagando pelos mundos dos mortos. Ele me convocara com seus miados angustiosos. Estendo a pata direita, acaricio a cabeça do gato Aprígio, abaixada em sinal de respeito, e digo-lhe:
- Estou aqui! Vim para resolver vosso problema!
Direitos autorais reservados: Antonio Carlos Rocha
Nenhum comentário:
Postar um comentário